segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Um Conto pelo Haiti



O Blog Ficção Científica e Afins, da escritora Ana Cristina Rodrigues está iniciando uma campanha de auxílio às vítimas do terremoto no Haiti. O conto abaixo é minha contribuição. Amigos escritores e leitores, ajudem a divulgar essa ideia. Com o mundo do jeito que está, um dia o Haiti pode ser aqui... Clique no link do blog da Ana e saiba como ajudar.






Na Nuca





O bruxulear da vela à sua frente não o incomodava. Estava diante da decisão mais importante de sua vida. As lembranças não eram mais dolorosas. Será que conseguiria continuar a fingir? Fingindo dava a impressão que se importava, mas na verdade, nada mais importava. Nada, desde aquele dia.
Tinha uma vida pacata, sossegada e feliz. Tinha amor, carinho e ternura. Chegar em casa era como aninhar-se. O aroma corriqueiro que saía da cozinha misturado ao cheiro doce de sua nuca. A mesma nuca que cheirava todas as noites e sempre tinha vontade de cheirar mais. O quase coque a deixava à mostra de propósito. Ela sabia que, ao entrar em casa, aquele seria o primeiro lugar no qual ele iria. Nunca tinha conseguido se ver sem ela. Aquele era seu mundo particular.
Viver sempre fora algo despropositado. Como se pode viver sem um motivo para tal? Estar vivo não sustenta o ato de viver em si, mas muitos o sustentam assim. Deve existir um motivo para viver, do contrário, tudo não passa de perda de tempo. Ele tinha esse motivo ao lado dela. Agora, não tinha mais. Tudo não passava de um imenso vazio.
Durante algum tempo tentou correr. Fugir de si mesmo. Fugir daquela dor, mas a dor se foi e nada ficara em seu lugar. Para que existir, se nem mais se quer fugir?
Na tarde em que tudo começou, ele chegou mais cedo em casa, para vê-la. Ansiou durante todo o dia pelo momento de sentir-lhe o perfume da nuca misturado aos temperos dos pratos que ela preparava. Abriu a porta extasiado com tal possibilidade e correu até a cozinha para encontrá-la. Ela não estava lá. Não havia aroma, cor ou gosto que se comparasse à decepção que sentiu. Percorreu então a casa. Não era uma casa grande ou com vários cômodos. Contudo, ao percorrê-la, sentiu o tempo parar. Uma eternidade a cada canto vazio, até a encontrar. O pequeno quarto pareceu ampliar-se com a visão.
Nem mesmo quando se lembrava conseguia sentir. Olhou novamente para a vela que ardia à sua frente pensando no porque de ainda estar ali. Sua vida acabara naquele pequeno quarto junto com suas últimas lágrimas. Devia esperar seu destino ou tomá-lo para si? Contemplou a face mais absurda de viver e percebeu que não havia sentido para continuar. Decidir se a vida vale ou não a pena ser vivida era a única verdade que existia.
Estava sozinho no mundo agora. Seus pais faleceram cedo. Sua mãe morreu no parto, não suportou dar a luz a gêmeos. Seu pai morreu com ela, mas seu corpo só deixou este mundo alguns anos depois. Definhou lentamente até partir deixando com ele a responsabilidade de cuidar da irmã. Cresceu com ela ao seu lado e sempre cuidou para que nada lhe faltasse. Cheirar-lhe a nuca todas as noites era sentir que tinham uma vida normal. Era evocar imagens felizes. Era afastar o cansaço e o desapontamento de ter um emprego insuportável só para poder dar a ela tudo o que ela queria. Prendia-se aquele cheiro como um náufrago se prende a um pedaço do navio que ainda insiste em flutuar. Essa era a sua vida. Insistir em flutuar quando o mundo afundava ao seu redor. Um cheiro, um beijo, um olhar carinhoso, um desejo de boa noite, uma esperança de uma vida normal. Um sopro de alegria em uma vida enfadonha. Era tudo tão pequeno e insignificante, mas ao mesmo tempo tão profundo e contundente. Ela era tudo que ele tinha, mas ele não tinha nada.
Só se deu conta dessa realidade naquela tarde. Os lampiões que iluminavam as ruelas por onde passava ainda estavam apagados. O sol começava a pensar em dormir para dar lugar à bela lua cheia que transparecia no céu timidamente esperando sua hora de brilhar. Vinha tranqüilo pelo calçamento irregular desviando das carruagens ao atravessar as ruas. Pensava que teria mais tempo em casa. Mais tempo para descansar, conversar, ler para ela. Simplesmente estar com ela. Pouco tinha feito isso ultimamente. Sentia falta de ter com quem partilhar a sua vida, ou sua inexistência viva. Tinha planos, mas ela tinha outros.
Amava o irmão, mas chegara a hora de se separarem. A sufocante atenção exacerbada começava a lhe dar asco. Queria viver sua vida, e não a dele. Era uma mulher e tinha metas. Tinha objetivos, propósitos. Queria sair dali. Queria se casar. Queria ter filhos. Queria o amor de um homem. Aquele amor capaz de tirar o fôlego. De te fazer flutuar. Aquele amor que te faz sorrir sozinha só por lembrar. Aquele amor que faz um leve toque na nuca reverberar pelo seu corpo arrepiando cada parte dele, como um pequeno choque que te levava ao céu sem nunca ter saído do chão.
Quando chegou ao quarto naquela tarde, pela porta entreaberta viu o corpo nu da irmã entrelaçando-se em outro. Por algum tempo admirou a cena. Jamais vira igual beleza em sua vida. Sorriam, estavam felizes. Mas o pouco que ali ficou foi o suficiente para transtorná-lo. Da admiração, passou à inveja. Aquele cheiro da nuca nua lhe vinha à mente, agora, tão amargo quanto o fel. Sentiu inveja, raiva, nojo. Outro estava a tocar-lhe a nuca. A nuca que lhe pertencia, lhe confortava. Aquele seu lugar sagrado profanado para sempre. Maculado.
Sentiu uma pontada em seu peito. Traição. Se ele não era feliz, então ninguém tinha o direito de sê-lo. Pensou que ela estava feliz com ele. Ilusão. Ela se entregava aquele homem com uma felicidade que ele jamais cogitou que existisse. Aquilo era uma ilusão. Nada tão belo e tão sóbrio merecia existir.
Deixou a porta em silêncio e foi ao velho escritório. Abriu a caixa de madeira que estava na cristaleira. Duas pistolas sobre a pequena almofada vermelha se acomodavam junto com duas balas. As pistolas de duelo de seu pai. Ninguém merecia o que ele não tinha.
Escancarou a porta. Dois tiros ressoaram na escuridão de sua alma. Dois corpos caídos sobre a cama. O sangue escorrendo pela brancura dos lençóis.
Sentou-se na sala e chorou. As armas ficaram no quarto. Quando a polícia chegou, ele estava sentado na sala olhando as sombras que bailavam à sua frente. Sombras de uma vela. Sombras de uma vida. Sombras de uma ilusão. Como o mais puro mármore, seu coração se tornou duro e frio. Nem mesmo a culpa o consumia. Eles tinham que morrer. No mundo, a beleza não foi feita para durar.Em sua cela escura, olhava uma vela e sua chama que tremulava. Esperar o dia de sua morte ou escolher o dia em que vai morrer? Não importava. Quando disparou as armas, ele as disparou contra si mesmo. Estava morto antes de chegar àquela cela e a forca nada mais era do que a inevitabilidade da potência se tornando finalmente ato.

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